sábado, 26 de março de 2011

CASO CLÍNICO: RECONHECENDO A SÍNDROME ANTIFOSFOLÍPIDE

Mulher de 34 anos, 2 filhos, apresenta quadro de fraqueza progressiva do lado direito do corpo há 2 dias. HP: TVP na panturrilha há 2 anos, atribuída ao uso de ACOs. Recuperação espontânea da hemiparesia, feito diagnóstico de esclerose múltipla. Um ano depois, os sintomas retornaram.
TC realizada mostrou alteração que poderia corresponder à área de desmielinização ou infarto. O quadro melhorou rapidamente, restando leve fraqueza residual no lado direito, com tônus aumentado. Avaliada por 2 neurologistas interconsultores, que concordaram com o diagnóstico de esclerose múltipla.
Dois anos depois, durante férias, apresentou início súbito de afasia de expressão, confusão e hemiplegia espástica à direita. Reflexos tendinosos aumentados à direita, normais à esquerda. O diagnóstico de esclerose múltipla foi questionado e o caso foi reinvestigado.
Exames laboratoriais:
FAN+ 1:160;
PTTa > 54 segundos;
plaquetas 95mil/mm3;
Anticardiolipina + 1:256 ;
Ex. de Imagem:
Tomografia Computadorizada (TC) mostrou área de infarto focal frontal esquerda;
Ecocardiograma mostrou vegetações em valva mitral, compatível com Liebman-Sacks.
Foi feito diagnóstico de: Trombose cerebral secundária a síndrome do anticorpo antifosfolípide (SAF).




DISCUSSÃO DO CASO CLÍNICO

Este caso apresentou uma paciente do sexo feminino da terceira década de idade, multípara, que continhas sinais de hemiparesia direita intermitentes que foi diagnosticada precocemente como esclerose Múltipla.
Primeiramente, antes de dar continuidade ao caso, devemos demonstrar conceitos sobre a doença esclerose múltipla, para assim discutir o caso acima.
Esclerose múltipla (EM) é uma doença inflamatória e desmielinizante do sistema nervoso central, embora sua etiologia ainda permanece desconhecida (idiopática). Os achados anatomopatologicos de inflamação, desmielinização e lesão axonal são atribuídos a mecanismos auto-imunes e o diagnóstico baseia-se em critérios clínicos, pois apesar da evolução das técnicas radiológicas, ainda não se encontrou marcador laboratorial para a doença.
Em relação aos sinais clínicos da EM, na literatura é descrito envolvimento de qualquer parte do sistema nervoso central, disseminada no tempo e espaço, o que implica no comprometimento de diversas áreas do sistema nervoso central em épocas diferentes. Os sinais mais comuns compreendem alterações piramidais (fraqueza muscular em um ou mais membros, espasticidade e sinais de liberação piramidal como hiperrreflexia, sinal de babinski e clônus); sensitivas (parestesias ou hipoestesias superficiais e profundas); cerebelares (ataxia de marcha, disartria e dismetria); visuais (diminuição aguda da acuidade visual, precedida de dor ou não, neurites ópticas, diplopias e escotomas) e comprometimento esfincterianos (incontinência ou retenção urinária e fecal).
Sabendo disso a análise do caso em diagnosticar a paciente não é tão simples assim, a investigação clínica deve ser aprofundada em parâmetros clínicos (história e exame físico) e paraclínicos (líquor, ressonância magnética e estudos eletrofisiológicos).
No caso apresentado, a tomografia computadorizada mostrou área de desmielinização ou infarto, com quadro clínico de piora e melhora da paresia direita, levando a acreditar que a lesão fosse ao nível de medula espinhal e dos tractos piramidais, dando assim o diagnóstico de esclerose múltipla. Mas a doença tem suas características próprias que as diferencia uma das outras no decorrer de sua cronologia evolutiva.
Dois anos depois de confirmado a esclerose múltipla, a paciente apresentou de maneira súbita, afasia motora (expressão), confusão mental e hemiparesia espástica direita, que segundo a clínica neurológica que houve comprometimento da área de Broca, que neste caso, situado no hemisfério esquerdo, comprometimento de parênquima nervoso e do sistema piramidal, levando a pensar numa holística de outro caráter.
Desta forma, num pensamento crítico, reinvestigativo, comparado a clínica e paraclínicos (FAN+ 1:160; PTTa > 54 segundos; plaquetas 95mil/mm3; Anticardiolipina + 1:256; TC mostrando área de infarto focal frontal esquerda; Ecocardiograma mostrando vegetações em valva mitral, compatível com Liebman-Sacks ), levamos a um diagnóstico sindrômico de comprometimento vascular.
Neste contexto clínico, devemos entender alguns conceitos sobre a síndrome do anticorpo antifosfolípide (SAF) que são manifestações clínicas e laboratoriais de trombose arterial e/ou venosa recorrentes, abortamentos de repetição e trombocitopenia, além de anemia hemolítica auto-imune, alterações cardíacas, neurológicas e cutâneas. Os eventos trombóticos são recorrentes e podem ocorrer em qualquer leito vascular, acometendo artérias, veias ou a microcirculação. As complicações obstétricas incluem abortos de repetição, óbito fetal ou parto prematuro devido à eclâmpsia, pré-eclampsia grave ou à insuficiência placentária.
As manifestações clínicas são originadas pelo comprometimento vascular de cada órgão afetado, tendo como exemplos: Extremidades (Veias- trombose venosa profunda; Artérias- isquemia e gangrena); Fígado (Veias- tromboflebite superficial, síndrome de Budd-Chiarri, Hepatomegalia, aumento de aminotransferases; Artérias- infarto hepático e hiperplasia nodular regenerativa); Glândulas supra-renais (Veias- Doença de Addison); Pulmão (Veias- Tromboembolismo, Hipertensão pulmonar), Pele (Veias- nódulos, máculas e úlceras; Artérias- gangrena, úlceras e livedo reticular); Olhos (Trombose de veias retinianas e Trombose de artérias retinianas); Cérebro (Acidente vascular encefálico, síndrome de Snedon, demência por múltiplos infartos); Coração (Infarto do miocárdio, angina, miocardiopatias, arritmias); Rim (Trombose de artéria renal, microangiopatia trombótico renal).
De maneira geral, após entender os conceitos e as manifestações clinicas sobre a SAF, comparando o caso clínico analisado, vemos que a paciente possui dois filhos sem apresentação do caso de eclâmpsia ou pré-eclampsia, isso pode levar o examinador ao erro diagnóstico. Entretanto a história da paciente nos traz manifestações clinicas de trombose venosa profunda com uso de anticoncepcional, trombocitopenia (plaquetas 95mil/mm3) e tempo de tromboplastina parcial ativado aumentado (PTTA > 54 segundos), mostrando assim que a paciente tem alguma alteração vascular.
Nas manifestações hematológicas a trombocitopenia esta presente em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico (LES) associado ao anticorpo antifosfolípide em 70% dos pacientes com SAF. A trombocitopenia é geralmente moderada (>50.000 cel/ mm3) e não está associada com hemorragias.
Anticorpos antifosfolípide são encontrados em cerca de 1% a 5% da população em geral, incluindo indivíduos aparentemente saudáveis. A prevalência desses anticorpos tende a aumentar com a idade. Anticorpos anticardiolipina são positivos em 12% a 30% e anticoagulante lúpico (fator de risco para trombose) estão presentes em 15% a 34% dos pacientes com LES. Estima-se que 50% a 70% dos pacientes lúpicos, com anticorpos antifosfolípide, desenvolvam SAF em 20 anos.
As síndromes neurológicas, associadas aos anticorpos de anticardiolipina, mais freqüentes, incluem ataques isquêmicos cerebrais, transitórios e acidentes vasculares, cerebrais isquêmicos, não embólicos. Outras manifestações neurológicas, associadas com a SAF, são doenças obstrutivas dos vasos da retina, migrânea, mielite transversa e neurite óptica. Na Tomografia mostrou área de infarto focal frontal esquerda, levando a uma lesão cerebral por comprometimento vascular.
Nas manifestações cardíacas a endocardite de Libman-Sacks (vegetações verrugosas, não infecciosas), insuficiência valvular, a trombose das artérias coronárias são freqüentes de ocorrer nos pacientes SAF e com LES. O ecocardiograma mostrou vegetações em valva mitral, compatível com Liebman-Sacks, mostrando mais uma vez a relação da clinica do paciente com a SAF.
Com tudo isso, levando a análises geral do quadro do paciente, chegou-se ao diagnóstico final de Síndrome do Anticorpo Antifosfolípide (SAF). No entanto, o quadro da paciente foi de Trombose cerebral ocasionada pela síndrome do anticorpo antifosfolípide diagnosticado tardiamente.
Portanto a paciente será conduzida para propedêutica de tratamento para trombose cerebral. A prevenção dos eventos trombóticos é feita através de terapia anticoagulante por longos períodos. Considerando os riscos de tal tratamento, a decisão de anticoagulação deve ser individualizada e inúmeros fatores devem ser considerados, incluindo o nível do anticorpo, o tipo e a precocidade do evento trombótico, e a idade do paciente. Há uma diferenciação do tipo de anticoagulante a ser utilizado, de acordo com o local da trombose.
Como neste caso, a paciente foi classificada como síndrome do anticorpo antifosforolípide tipo III, ou seja, houve comprometimento de artérias vasculares cerebrais, sendo a conduta além de orientações gerais como evitar o uso de anticoncepcionais orais, tabagismo, sedentarismo, controle de outras co-morbidades associadas a maior risco de doença aterosclerótica (hipertensão arterial, dislipidemias e hiperglicemia), fazer uso de anticoagulante oral, antagonistas da vitamina K (Warfarin), mantendo o valor de INR entre 3,5 a 4,5 associado ao uso de ácido acetil salissilico (100mg/dia) em doses baixas.
Lembrando que o uso da warfarina na gestação é contra-indicado, por ser teratogênica e imunossupressores (ciclofosfamida, metotrexato, cloroquina) e/ou corticóides (prednisona, prednisolona), somente usado para tratamento de base (LES ou colagenoses).
O tratamento para a plaquetopenia deve ser assegurado para casos onde o índice de plaqueta esteja inferior a 50.000cel./mm3, neste caso não está indicado o tratamento para trombocitopenia visto que a contagem de plaqueta da paciente está a 95.000 cel./mm3.

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